Tiro pela Culatra? Um Olhar Psicológico sobre o Processo dos Anjos e Joana Marques
- João Ereiras Vedor
- há 1 hora
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Num tribunal digno de Kafka, onde uma piada de um minuto vale 1,1 milhões, o humor enfrenta o seu maior juiz: o ego humano.
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João Ereiras Vedor 07/11/2025 (Originalmente Publicao no Jornal Observador)
Antes de mais, boa tarde, ou boa noite, ou até bom dia! Não sei muito bem como se inicia um testemunho, mas gostaria de deixar aqui o meu sobre este tão digno processo para a nossa atividade jurídica. Creio que não é preciso entrar em grandes detalhes sobre o caso, pois já muita tinta correu sobre o processo antes do primeiro e do segundo ato. Já vamos no terceiro round (no dia em que escrevo o artigo) e, portanto, para lá do prólogo. Por isso, não quero entrar aqui em manifestos kafkianos sobre este processo, mas não resisto a ver neste circo jurídico um espelho do nosso embate com o humor e a liberdade.
Sendo eu um psicólogo clínico e um pragmatista, interessa-me a função de todo este processo e a sua fama. Como é que, de repente, um vídeo de um minuto, sobre uma atuação de pouco menos, conseguiu levantar uma celeuma tão grande? Na minha opinião, isso significa que este processo desencadeou um efeito de “tiro pela culatra”.
Pode parecer pioneira e excêntrica esta perspetiva, mas vou tentar ser sintético e não maçar o caro leitor com aspetos desnecessários da engenharia da minha analogia. Contudo, algum jus lhe devo fazer, pois a intenção da presente expressão perdeu os seus efeitos mecânicos, de tão antigo mecanismo que representa. O ‘tiro pela culatra’ era uma consequência de defeitos mecânicos ou de mau recarregamento nos antigos mosquetes ou pistolas de percussão.
Essa consequência podia dever-se a vários erros de manutenção e/ou gestão da arma, ou a defeitos mecânicos da mesma. Alguns exemplos tinham a ver com munição defeituosa ou calibre impreciso; obstrução do cano; falha no sistema de fecho; material de baixa qualidade; falta de manutenção, etc.
Neste momento, o leitor, com toda a legitimidade, pode estar a perguntar-se: “Mas o que é que isto tem a ver com a situação dos Anjos e da Joana Marques?”. E, com estima, relembro que os Anjos foram selecionados para dar o ‘tiro de partida’ no Moto GP de Portugal, em 2022. Tiro esse que parecia de pistola de festim (dado o efeito inócuo que poderia ter provocado), mas que afinal soou a um ‘tiro pela culatra’: sem mazelas imediatas, mas aparentemente com sequelas, quando o evento foi mais tarde relembrado por imensas pessoas (incluindo Joana Marques).
Olhando atentamente os vídeos de reprodução do evento, percebemos claramente quais foram os vários erros que constituíram o ‘tiro pela culatra’. Vou deixar algum suspense para o principal, começando pelos mais inocentes. Em primeiro lugar, toda a gente sabe que a munição selecionada para o evento era de calibre impreciso para a arma que a iria representar. Selecionar “A Portuguesa”, ainda por cima a capella, para uma pistolinha vocal tão pequena, pareceu-me, no mínimo, insensato. Visto que “A Portuguesa” tem pinta de bala de canhão e os Anjos, no máximo, são aquela pistolinha de água vistosa, adquirida na feira em contrafação, que promete um grande jato, mas só deixa uma gota morna, tal como o seu maior hit “Quero Voltar”, que alegadamente é, na verdade, o hit “Back to Where We Started”, da banda Worlds Apart.
Além disso, é possível que alguma obstrução tenha ocorrido no cano vocal dos irmãos Rosado, entre os seus vibratos, dando a falsa sensação de se ouvir pronunciar a palavra “igreijos avós” em vez de “egrégios avós”, curiosamente tal e qual a letra do Hino Nacional. Também houve um claro erro no sistema de fecho, porque, quando os Anjos começaram a soar “ÀS ARMAS, ÀS ARMAS!”, o engenheiro de som poderá ter tentado travar a culatra, mas apenas aumentou o efeito de “chunguisse” com um delayqualquer aplicado, levando-nos a constatar que ou o material era, de facto, de baixa qualidade, ou então a manutenção feita (estudo prévio do arranjo musical) não foi levada a sério.
Algo que, na academia militar, se leva, pelos vistos, muito a sério, já que os militares são treinados a desmontar e montar rapidamente a sua arma. Porém, eu compreendo, porque, antes de toda esta miséria (alegadamente) levada a cabo pela Joana Marques, os Anjos não tinham sequer tempo para entrar neste tipo de treinos, pois estavam sempre a disparar munição! Em digressão, quero eu dizer.
Por fim, existe ainda outra causa provável; essa que guardei com carinho para o caríssimo leitor. Refiro-me a um erro que desencadeia o ‘tiro pela culatra’, muitas vezes causado pelo Ego do artilheiro. Normalmente, esse erro está relacionado com o excesso de pólvora. Se o artilheiro colocasse demasiada pólvora na câmara, a pressão poderia ser tão grande que a bala ficaria presa e a explosão encontraria maior resistência, levando o calibre a sair pela culatra. Ora, como o leitor pode facilmente perceber, a pólvora serve aqui para várias analogias: excesso de excentricidade nos arranjos, excesso de importância atribuída ao fenómeno, excesso de vergonha, excesso de pressão social, excesso de vitimização, etc.
Creio que este excesso de pólvora desencadeou um efeito de ‘tiro pela culatra’ jamais visto na carreira dos Anjos. Porque, depois do misfire ocorrido no Moto GP de 2022, decidiram andar à coboiada com o bobo da corte da sociedade: o Joker (Joana Marques). Seria o mesmo que, de repente, o cavaleiro, caindo do cavalo com estrondo, tentasse espetar o touro enquanto ficava revoltado pelo comentador comentar a cena. A questão que se coloca também é: e se o público riu? É cúmplice da triste cena? Já que o avô Freud avisava que, para a piada ter piada, são necessários três elementos: o emissor (humorista que conta a piada), o objeto (alvo da piada) e o receptor (o público que ri). Neste caso, quem deve ser incluído no processo?
Além disso, estamos a passar ao lado da função do humor, porque segundo Freud, o humor teria (curiosamente) a capacidade subliminar de transformar uma determinada pulsão (agressividade inerente à espécie humana) em riso. Ou seja, transformar a pólvora em bolhinhas de palhacitos. Parece-me uma boa alternativa, não?
O que nos leva, certamente, a questionar por que razão o humor já não está a ser interpretado desta maneira. Vamos relembrar o ainda recente caso de agressão ocorrido nos Óscares. Sim, refiro-me à piada do Chris Rock, e não à chapada do Will Smith. Porque, de facto, parece que o humor, hoje em dia, passou a ser uma arma mordaz, pelo número de egos que é capaz de massacrar. O que me leva a perguntar: afinal, quem carrega a pólvora?
O humorista foi tendo problemas ao longo do milénio da sua existência, se considerarmos o seu avô afastado, o bobo da corte. O bobo da corte pode ter sido perseguido intermitentemente em alguns séculos (que não vale a pena detalhar aqui), mas, normalmente, usufruía de um privilégio incomum: o de rodear a nobreza com o seu gracejo, com o privilégio de não valer rigorosamente nada. Talvez Henrique VIII, no meio do seu regozijo, se virasse para o seu assistente e comentasse: “Realmente, boa punchline! Da próxima vez não irei executar tão precocemente uma das minhas amadas.”
A verdade é que vários dados indicam que, na realidade, o humorista é incapaz de mudar opiniões. Na verdade, só aumenta aquilo que, em psicologia cognitiva, conhecemos como o ‘efeito backfire’ (sim, traduzido à letra: tiro pela culatra), ou seja, o efeito de reforçar as crenças e intenções que a pessoa já possui. Vê-se isso frequentemente nas redes sociais: quando entro numa câmara de eco, vejo alguém a reforçar as suas crenças em relação a um determinado humorista e, quanto mais sucesso ele tem, mais essas crenças se intensificam (exemplos: Ricardo Araújo Pereira, Bruno Nogueira, etc.).
Ainda assim, o humor pode (e deve) servir como válvula de escape. Só acaba por se tornar um tiro pela culatra quando o visado possui demasiada pólvora sobre si (importância, Persona blindada, Egoinflamado, egocentrismo, etc.). Em alternativa, creio que o humor pode funcionar como termostato para uma sociedade sã, porque nos permite medir os limites da estupidez e da excentricidade. Em casos extremos, pode tornar-se mais rico do que a própria filosofia, pois tende a reverter a lógica, levando uma premissa até ao absurdo ou expondo-lhe a fragilidade.
No entanto, na contemporaneidade da sociedade, o humor tem sido posto à prova (relembrando não só o caso do Chris Rock, mas também o de Leo Lins e outros). Porém, talvez a culpa disto seja dos próprios humoristas. Eles também andam cheios de pólvora. Antigamente, o humor entrava antes da madrugada e dos filmes com bolinha vermelha. Hoje chega a fazer horário nobre, com monólogos nos Óscares, especiais na Netflix, etc. Talvez o humorista ande a arriscar com o excesso de pólvora, pois correm o risco de serem levados a sério. Isso seria muito triste, porque, na verdade, um humorista deve ser só um palhaço, claro.
Se mantiver o estatuto de palhaço e bobo da corte, está livre. Pois, nas sociedades bárbaras, esse bobo da corte era alvo de riso e escárnio. Embora, atualmente, pareça ser alvo de estaladas e processos.
Num tribunal digno de Kafka, onde uma piada de um minuto vale 1,1 milhões, o humor enfrenta o seu maior juiz: o ego humano. No entanto, sem o humor como válvula de escape, o ego de um sufoca todos à sua volta, e o tribunal vira palco de tragédia. Cabe a nós, como sociedade, decidir: queremos rir das nossas falhas ou silenciá-las com processos?
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Autor: João Ereiras Vedor
Psicólogo Clínico e da Saúde
Especialista em Psicologia Analítica
Co-founder do Jungian Clinical Institute
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