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O Joker de Joaquin Phoenix: A Face Sombria que Continua a Espelhar a Nossa Sociedade

Atualizado: há 18 horas


O arquétipo do Joker é como uma energia livre que circula às margens da sociedade e que não consegue conviver com a sua estrutura.

João Ereiras Vedor 11/02/2020


Quem não entende o porquê do sucesso da última obra cinematográfica, à qual Joaquin Phoenix dá a cara e corpo ao manifesto (Joker), no mundo atual é porque provavelmente está muito alienado da sua própria existência. O que por vezes nem é assim tão negativo quanto isso, pois Orwell explica que "ignorância é felicidade" e se por um lado estar alheio à realidade revela ignorância, por outro lado, nos dias que correm, a ignorância acaba por ser uma dádiva, já que não nos permite descortinar a realidade que pode ser por vezes devastadora a vários níveis.


Tomar consciência é sempre um processo doloroso. É por isso que muitas pessoas vivem constantemente numa fuga desse processo, evitando-o ao máximo, preferindo esconder as suas feridas até que elas vão perfurando e se afundando lentamente na sua própria pele, ficando enclausuradas algures nas gavetas cinzentas do próprio corpo. Tomar consciência é tão doloroso e ainda assim tão dramático que foi esse mesmo processo que simbolicamente despojou Eva e de Adão do próprio paraíso.


Todavia, quando surgiu o último filme do Joker parece que as pessoas despertaram para uma realidade coletiva. De facto, não foi só a personagem em si, mas a frieza e a tenacidade crua da atuação de Joaquin Phoenix, parece ter provocado a dose certa de ressonância capaz de acender as chaleiras inconscientes dos espectadores. Quando isto acontece, dizemos em linguagem analítica que um arquétipo foi constelado.


A verdade é que o Joker sempre foi um arquétipo muito interessante do ponto de vista da formação psicológica. A esta personagem é permitida tudo em prol do alívio da tensão psicológica. As facetas podem mudar ao longo dos tempos, mas é muito fácil detetar o Joker em qualquer palco da vida, seja no cinema, nos dramas televisivos, nos livros e até nas narrativas mitológicas.


No fundo, o Joker é um ilusionista capaz de criar várias realidades entre a dualidade de tempo e espaço. O Joker apresenta-se sempre como um Semideus, Deusa, espírito, homem, mulher ou um animal antropomórfico que prega partidas ou desobedece às regras pré-estabelecidas e foge do comportamento padrão.

Já o bobo da corte era explorado nos palácios mais majestosos como bode expiatório de todas as frustrações de uma corte banhada na perversidade e alheia a si própria do ponto de vista individual e ético. Algum paralelismo com o estado contemporâneo do sistema social?


O arquétipo do Joker é como uma energia livre que circula às margens da sociedade e que não consegue conviver com a sua estrutura. Por isso o Joker absorve o seu caos para restituir a sua razão. O caos social é salutogénico ao Joker que vive em constante paradoxo com as ditas normas sociais. Por isso é fácil presumirmos um louco quando nos sentimos confortáveis na nossa estrutura social e de nos aproximarmos desse louco quando essas mesmas estruturas deixam de ser confortáveis.


Tradicionalmente, o Joker pode aparecer como salvador, herói, vítima, criminoso ou um idiota. Basicamente a sua expressão evolui mediante as cordas que são tocadas ao longo da narrativa do seu desenvolvimento, mas a sua ação emerge naturalmente “do seu gosto intrínseco por piadas e brincadeiras maliciosas, pelos seus poderes como metamorfo, a sua natureza dupla, meia animal, meia divina, a sua exposição a todos tipos de tortura, e por último mas não menos importante, a sua aproximação à figura do salvador” (Jung, 1971, p. 255, par 456). É "essa transformação do meaningless em meaningful que revela a relação compensatória do Joker com o herói” (Jung, 1971, p.256, par 458). Tal como Hermes que na mitologia grega tanto é um Joker trapaceiro quanto o mensageiro que transporta a verdade. No caso da testemunha pericial ao testemunhar no tribunal, o mensageiro e a mensagem são um só: não se pode separar o mensageiro da mensagem em si. Esta palavra que quando toca um significado profundo de transformação encontra necessariamente vestígios da Logos, que é permeada nos atos do Salvador, e um reflexo cruzado dos atos do Joker quando toca nesse papel messiânico por dilacerar as estruturas tirânicas e gastas da própria sociedade.


Na verdade, vivemos tempos sensíveis e fadamos sistematicamente essa realidade disfarçando-a através de positivismos, falsos alarmismos, identidades precárias, ditaduras da felicidade e da liberdade de expressão. Num mundo onde tudo virou aparências é de facto simples percebermos o porquê de todos constelarmos a máscara do joker. O problema central é que o mundo que estabelecemos no Agora, criou um palco bem organizado para a emergência de todo o tipo de Jokers que variam na sua expressão devido à sua narrativa. Não é incomum ligar por exemplo a CMTV e ver um determinado palhaço a falar sobre questões sociais e a fabricar sensacionalismos disto ou daquilo.


Não obstante, este Joker que todos veste, não é um mero problema de coletividade social, mas de entorpecimento individual. A falta de expressão, a inação, a inércia e a apatia são sintomas precários de uma sociedade cada vez mais alienada dos seus valores centrais. Hoje estamos cada vez mais distantes de tudo e, na nossa alienação, cada vez mais afastados de nós mesmos.


A expressão da máscara que todos vestimos neste Joker, serve apenas para disfarçar a vergonha que realmente temos em fazer algo mais, em pensar mais e em ser mais! Somos campeões do mundo e medalhas de ouro olímpica no desporto de apontar o dedo e arranjar bodes expiatórios, não percebendo que é nesse mesmo exercício que acabamos por alimentar a nossa sombra. Visto que o exercício coletivo de revestimento da máscara através da massa acrítica pressupõe uma maior sensibilidade, porém a verdade é que pode ser um sinal alarmante de falta de identidade própria.


Tal como diria Carl Jung “As pessoas vão fazer qualquer coisa, não importa o quão absurdo seja, de forma a evitar olhar para suas próprias almas.

A verdade é que uma pessoa não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas sim ao tornar a escuridão consciente. Porém, esse procedimento é desagradável, portando, não é popular”.


Tal como diz Joaquin Phoenix no seu discurso de atribuição dos Oscar de Melhor Ator “nós somos os culpados pela visão egocêntrica do mundo”, mas a verdade é que o nosso maior problema é que nós fazemos sistematicamente dos nossos problemas a centralidade do mundo. De facto, o maior desafio do ser humano é abandonar o seu egocentrismo e olhar mais além e ir mais além de si mesmo.

Este texto serve para honrar a performance incrível de Joaquin e o seu Oscar já tardio por outras incríveis atuações, mas acima de tudo pelo que permitiu acrescentar à nossa sociedade. Através de rebuscar fantasias perversamente fadadas nas mentes coletivas, o Joker foi capaz de colocar a cru o lado sombrio da essência humana.


De facto, conhecendo um pouco do que é público de Joaquin Phoenix e a sua atuação em Joker, parece que foi naturalmente arquitetado num cruzamento de duas faces da mesma moeda. A determinado momento não conseguimos perceber se Joaquin Phoenix foi devidamente selecionado para o papel de Joker ou se Arthur Fleck foi intuitivamente desenhado a priori para Joaquin. Uma coisa é certa, a sua personalidade de puer aethernus cunha este Joker com uma aversão mais natural ao mundo dos homens com letra maiúscula, que remata com algo iminente da sua sombra “Run to the rescue with love and peace will follow”.

Este pode ser um início de uma nova era, que deve ser devidamente enquadrada na saúde mental mundial. Esta atuação é ouro líquido que diz muito sobre o ator e sobre o nosso estado atual. Muito poderá ser explorado a partir daqui, mas meros agradecimentos não chegam para honrar uma performance tão autêntica.



Parabéns Joaquin Phoenix e Obrigado.


Bibliografia:

Jung, C. G. (2014). The archetypes and the collective unconscious. Routledge.

LaLlave, J. A., & Gutheil, T. G. (2012). Expert witness and Jungian archetypes. International journal of law and psychiatry, 35(5-6), 456-463.






Autor: João Ereiras Vedor

Psicólogo Clínico e da Saúde

Especialista em Psicologia Analítica

Co-founder do Jungian Clinical Institute



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