"A minha mãe sacrificava-se por nós, mas q.b: as outras mães ricas compravam pão da Bimbo sem côdea; as mães da classe média pão de forma genérico com côdea, sacrificando o seu tempo a retirar a côdea"
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João Ereiras Vedor 20/04/2024
Recentemente o Observador publicou um artigo acerca de um estudo, onde se verificava que quando a mulher engravida o seu corpo tende a envelhecer 3 meses. Fiquei surpreendido por ser tão pouco, já que o meu pai culpava-me sistematicamente pelos seus precoces cabelos brancos e a minha mãe dizia que as suas rugas derivavam do desassossego que eu lhe provocava por ser tão traquina. Além disso só tendeu a piorar porque a minha adolescência foi um desastre. Acredito que os tenha envelhecido uns bons 50 anos. Mas coitadinhos, como pertenciam à classe trabalhadora e tinham uma mente tradicional, logo masoquista, acabaram por ter mais dois filhos. Lembro-me de aos 20 anos andar com eles ao colo de tão velhinhos que eram. Hoje renasceram e até já nem os conheço bem. É o milagre que ocorre quando os passarinhos começam a voar do ninho. Porém eles pensavam que se livravam de boa, quando os surpreendi com uma neta e voltaram a envelhecer mais um pouco. Aí começaram verdadeiramente os problemas, mas para o meu lado infelizmente. Já vou explicar.
Pelos vistos a família tem sido uma receita milenar e todos nós temos provado desse prato intragável. Algo que, felizmente, está prestes a mudar, uma vez que os Engenheiros Sociais têm acautelado uma agenda milagrosa para transformar este nosso mau fado. Graças a Deus (ou ao Big Brother, porque Deus não existe), somos abençoados por usufruir dessa elite pensante que nos ensina o quão perigoso é ser família.
Se eu tivesse ouvido os mais velhos, não teria cometido tantos erros; mas, para isso, teria que valorizar a família, porque essa sabedoria provém dos avós e eles são velhos demais para ensinar algo ao novo.
Como eu dizia, tivesse eu ouvido e poupava-me a infelicidade, já que eles costumam referir “filho és pai serás”. Dito e feito, numa noite de amor com a chata da mesma mulher (minha esposa por sinal) lá engravidamos e, no final dos festins, em vez do usual alívio, senti logo que tinha envelhecido um mês. Até lhe cheguei a dizer:
“Espera lá que isto não foi coito, foi gravidez, porque tenho aqui umas peles a cair que não estavam assim antes do festim”. Ao que ela respondeu já estar habituada. Nem liguei porque no final de contas estava certo. Quase nove meses dali (porque como se não bastasse o flagelo da gravidez, a nossa traquina nasceu prematura), nasce a nossa filha.
Foi nesse momento que chegou a minha altura de provar esse elixir da biologia que, ao contrário da ‘fuente de la juventud’, em vez de rejuvenescer, tende a envelhecer a nossa pobre carroça existencial.
Comecei logo a morrer no primeiro dia em que os meus olhos cruzaram com o seu frágil e alienígena aspecto. Aquele grão de amor provocou em mim emoções convulsivas que alternavam entre o riso histérico e o choro compulsivo. Pensei que estava a morrer visto não reconhecer a possibilidade de tal paradoxo, só poderia ser coisa do paraíso.
Depois desse dia foi sempre a piorar. Aprendi que ser pai é um autêntico exercício de memento mori. É uma constante de perda, sacrifício e envelhecimento. Querem um exemplo?
A minha mãe sacrificava-se por nós, mas q.b. Por exemplo as outras mães ricas compravam pão da Bimbo sem côdea. As mães da classe média compravam pão de forma genérico com côdea, mas sacrificavam o seu tempo a retirar a côdea, para que os seus meninos no intervalo pudessem usufruir da mesma experiência dos outros. Ou seja, comer o agradável miolo com manteiga. Nós como eramos pobres comíamos pão normal com manteiga. Os meninos ficavam fascinados com o meu pão, porque eu dizia que ia comer o meu bijou. Eles não sabiam o que era, por isso disfarçava a minha pobreza admitindo que vinha da costela da minha mãe e que aprendemos com os primos emigrados na França. Não obstante, com as dicas de sacrifício da minha mãe tornei-me rico.
Existe quem sonhe comprar o primeiro apartamento, eu finalmente consegui aos trinta anos comprar pão Bimbo sem côdea como sempre sonhei! Isso para mim era sinónimo de sucesso e prosperidade. Contudo, como não sou completamente rico, não posso comprar muito. É aí que reside o problema. Porque a minha filha, que agora tem três anos, pelos vistos também adora esse pão da Bimbo sem côdea. Moral da história, deixei de comer pão sem côdea da Bimbo, para que ela tenha essa agradável experiência.
Aqui aprendi duas coisas muito relevantes. Nós começamos a abdicar da nossa vida para dar vida aos nossos filhos. E adicionalmente aprendi que, se vens de uma família pobre e queres crescer no elevador social, tens de aprender a morrer um bocadinho. Tens de aprender a sacrificar-te para que os teus possam chegar ao próximo nível. Esta parece uma lei simples e generosa e, talvez por isso, não tem grande relevância para a Engenharia Social ou sucesso junto das massas. A verdade é que até me deixa feliz, porque ouvi ela a dizer “pai este pão é mesmo bom!”. E mais uma vez senti que envelheci nesse preciso momento.
Sou psicólogo e vejo muitos clientes com medo de envelhecer. Sou nomeado de idealista quando digo que envelhecer tem as suas vantagens. A minha filha por exemplo, tornou-se a minha melhor forma de terapia. Porque a partir do momento em que ela nasceu eu deixei de pensar em mim. Hoje envelheço e já nem noto. Há quem diga que perdi a ambição e que já não sou o mesmo. Dizem que estou cada vez mais careca e que até já tenho a barba branca.
Eu digo-lhes que, em certa medida, o Homem morre quando atinge o seu propósito. Trata-se de uma espécie de realização chata que, paradoxalmente, diminui a tristeza, substituindo-a por uma satisfação permanente e rotineira. Tragam lá a sepultura de uma vez a não ser que a minha filha precise de ‘Dim-dim’ para comprar mais pão da Bimbo sem côdea.
Ps: O estudo referido apenas serviu de mote para esta crónica. O mesmo pode estar sujeito a erros de fiabilidade e generalização dos resultados, devido às limitações e contexto específico do desenho de estudo. Além disso esta crónica detém uma pequena pitada de ironia e sarcasmo. Esta última frase também.
Autor: João Ereiras Vedor
Psicólogo Clínico e da Saúde
Especialista em Psicologia Analítica
Co-founder do Jungian Clinical Institute
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